sábado, 29 de setembro de 2012

A Questão Municipal: O Voto na Cultura Política Brasileira

[José Eisenberg e Gisele Silva Araújo]

Diz-se que a cultura política brasileira tem forte caráter nacional, os cidadãos e cidadãs conferindo menor importância às eleições locais. Esta percepção talvez faça sentido, visto que durante mais da metade da história do Brasil independente – o Império e os períodos ditatoriais da República, 1930-1945 e 1964-1985 –, a maioria dos assentos político-administrativos eram decididos, ou tinham sua sustentação irradiada a partir do centro. O tema, no entanto, é controverso: muitos autores do pensamento político brasileiro identificaram, principalmente antes das medidas de integração nacional levadas à frente por Getúlio Vargas, uma solidariedade política local ancorada no pertencimento clânico ou regional, que se sobrepunha à ideia de nação.
Eleições vêm se tornando eventos regulares no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988: de dois em dois anos, o país escolhe os mandatários do poder nas várias instâncias da federação. Afirmar a importância da política local, entretanto, depende do quão relevantes são os pleitos municipais,  o que se subordina não apenas à continuada prática eleitoral, mas também à visibilidade do efeito das decisões e ações dos representantes eleitos. A conjuntura política nacional tem hoje muito espaço nos meios de comunicação. Terá também na sustentação de candidaturas e bases eleitorais locais? Ou será que, com a vertiginosa urbanização e formação de cidades dos últimos 70 anos, o brasileiro constrói a motivação do voto apoiado na realidade cotidiana do seu município, agora citadino e não mais sob a lógica do clã rural?
O sistema político brasileiro é frequentemente caracterizado como um presidencialismo de coalizão. A dissociação formal entre a escolha dos representantes do Executivo e do Legislativo – o eleitor está autorizado a indicar grupos distintos e até mesmo opostos para aquelas posições –, demanda que se estabeleça um entendimento entre os poderes, seja por meio de convergências ideológicas, seja através de trocas mais ou menos republicanas. Garante-se assim, antes ou depois das eleições, para efeito eleitoral ou com vistas à governabilidade, um Legislativo afinado com o Executivo. E ainda que a teoria não sublinhe, o Judiciário também está implicado na coalizão: compõe-na em maior ou menor grau, podendo interpretar o direito obstando ou não as iniciativas executivas e legislativas. Não à toa, as nomeações para o Supremo Tribunal Federal são de suma importância política.
As teses do presidencialismo de coalizão explicam a coordenação horizontal entre os três poderes – separados pela Constituição – mas não se debruçam mais detidamente sobre as relações verticais da federação, entre Municípios, Estados e União. Não tratam, destarte, do tema da produção do voto e da fabricação de candidatos desde o local, tão cotidianos num país que tem eleições a cada dois anos, nem tampouco das relações entre estes momentos e a política estadual e nacional.  Enquanto o entendimento é a lógica de construção das coalizões, o que torna atores políticos legítimos para protagonizar seu papel nestas alianças permanece obscuro. E as razões profundas do nosso presidencialismo, independentemente de sua capacidade operacional, talvez se esclareçam ali, na contínua produção do voto e na linguagem comum que se estabelece entre ele e a representação.
As eleições no Brasil de 2012 – 24 anos e seis pleitos municipais desde a Constituição de 1988 – se desenrolam em meio a estas incompreensões. Nas últimas décadas, qual foi o efeito da experiência continuada do voto, com seu calendário político intenso e eleições bianuais, sobre a cultura política brasileira? Para além do presidencialismo de coalizão – lógica determinada pelas próprias regras do jogo –, como entender a linguagem da representação que mobiliza milhões de votos e as conexões que se estabelecem entre pleitos municipais, estaduais e nacionais?
Tais questões exigem que se ponha em tela, antes de tudo, o quão efetivas são as agendas municipais. À diferença da Primeira República – cenário do coronelismo, tal como exposto por Victor Nunes Leal – a Constituição de 1988 ampliou as atribuições de prefeitos e vereadores, e reduziu o poder dos Estados. É o Município – assim lhe garantiu o constituinte – que tem autonomia e prioridade decisórias nas matérias de interesse local, em que pese a indefinição de conteúdo deste conceito. Sua importância na organização federativa brasileira atual é tamanha, que alguns juristas o entendem como um novo ente federativo, condição inédita no país e inexistente em outros lugares. É evidente, entretanto, que o Município não está sozinho em seu protagonismo na política e na administração pública: a União também tem um rol bastante significativo de atribuições, certamente mais extenso. Foram os Estados – antigos lugares-tenentes da descentralização que sustentou o coronelismo – que se tornaram os primos pobres da federação: restam a eles competências residuais que parecem tender ao esvaziamento.
Ora, se a existência de uma cultura política de acento nacional nunca foi incontroversa, menos ainda o será neste cenário de fortalecimento do Município, e de eleições regulares e contínuas.  A hipótese que se robustece, então, é a de que a linguagem da política – que estabelece a comunicação entre o representante e o eleitor – está cada vez mais próxima das questões da vida cotidiana. No Brasil – talvez mais que do que em outros lugares, pela centralidade constitucional do Município e pelo rebaixamento administrativo e econômico dos Estados –, o embrião do sistema político pode estar assentado na realidade local, à moda tocquevilleana, afastada a forte exigência da mitigação do interesse privado. Ao lado da cultura política de caráter nacional, portanto, um complexo de formas de convivência política do dia-a-dia parece encontrar passagem para o sistema político formal, irradiando desde aí as mais altas figuras da representação.
De algum modo, portanto, aquele suposto centralismo parece ter que se entender com o municipalismo: se as ações nacionais afetam toda população e pretendem repercussão pela divulgação prioritária que lhes conferem os meios de comunicação, o Município é decisivo para todos nas minúcias do cotidiano. Do alto da União descem as grandes políticas públicas, o financiamento de serviços locais essenciais (caros demais para que a base tributária dos municípios contemple), e as articulações político-eleitorais da coalizão. Cá embaixo, onde vivem todos os brasileiros, é que se experimentam assistência social, caridade, serviços de utilidade pública, disponibilização de bens urbanos, questões da rua, do bairro, da escola, do futebol, do posto de saúde, da igreja, do lazer, da juventude, do trabalho, da velhice, da violência. A dinâmica do sistema político brasileiro tem que operar, destarte, numa via vertical de mão dupla.
Compreender a linguagem da representação é um desafio para a ciência política. As eleições municipais de 2012 oferecerão o desenho das escolhas do país e, se o analista puder afastar sua infundada onipotência – que o faz entender como racionais apenas os votos que se encaixam nos seus próprios critérios de racionalidade – , elas exporão sua própria gramática, mais potente, talvez, e mais enigmática que a das coalizões centrais. Cada eleitor dirá ali quais são seus bens relevantes e nomearão seus porta-vozes mais próximos, representantes da oferta e demanda por serviços públicos, de preceitos morais e/ou religiosos, da defesa de direitos de grupos específicos, ou, simplesmente, de convicções fracas, pontuais e dispersas. O eleitor brasileiro não é indiferente à política, e a causa não é a obrigatoriedade do voto: a maioria digita números válidos, mesmo que seja sem muita fé.
As adesões que se manifestam nos pleitos municipais têm uma relevância para a compreensão da cultura política brasileira até então pouco enfatizada pela ciência política, convencida em demasia do centralismo. Afinal, embora tais adesões estabeleçam laços políticos tênues, frágeis e móveis, elas guardam enorme significação, precisamente porque articuladas à convivência social cotidiana e às demandas que daí advêm. Os eleitos, então, tornam-se mandatários e mandões a um só tempo: seu poder advém dos que ele reúne em torno de si, e, através dessa mesma clientela, ele expande sua capacidade de mando, aumentando o seu valor no arranjo institucional. As adesões múltiplas e distintas que o sustentam voluntariamente envolvem a rua, o trabalho, a igreja, o futebol, as novelas, programas laicos ou religiosos de televisão, e até mesmo o tempo curto e entediante do horário de propaganda eleitoral gratuita. Adesões que são impressionistas, emocionais e racionais, tudo ao mesmo tempo, todas com igual valor.
Assim, mais do que obedecer mecanicamente a lógica do centro, ou sucumbir inequivocamente à força do capital, o voto do cotidiano expressa a malha densa em que se tecem os aspectos mais vitais da experiência social. E, ademais, é também o voto que representa as raízes descentralizadas da democracia do país: ao criar a clientela local, dando partida ao mandonismo, ele constitui talvez o elemento hoje dominante da cultura política brasileira. Ele é certamente interpelado pelo centro e pelo dinheiro, mas também conforma, de baixo para cima, o sistema político nacional.
O mandonismo, o clientelismo e a associação com o capital são as três faces do que chamamos sistema representativo democrático-liberal, aqui e alhures. Não são, portanto, nenhuma jabuticaba brasileira. O coronel da Primeira República – o proprietário rural que, diante da decadência do seu poderio econômico, se fez representante político estadual privatizando o público em proveito de sua classe – se vai longe. Hoje, adiantada a diferenciação entre política e economia, a representação parece ser construída sem que coincida necessariamente com o poder econômico, o que não impede, bem sabido, que o público seja privatizado para benefício de alguns. A lógica desta política, no entanto, passa a exigir entendimentos mais complexos entre os mandatários-mandões, seus clientes e o capital, obrigando-os a lidar com os resultados efetivos e percebidos das decisões. Na base deste arranjo está a legitimação conferida pelo voto, impossível de ser simplesmente comprado e tampouco explicado pela suposta ignorância seletiva de uma parcela majoritária do eleitorado. Tudo isso, somado à regularidade da experiência eleitoral no Brasil e ao lugar destacado que o Município ocupa na ordem jurídico-política brasileira, sugere que a política local possui forte potencial para conformar a política dos Estados e da União. De baixo para cima, a produção do voto do cotidiano tensiona a política nacional e o presidencialismo de coalizão.
A questão municipal é a grande novidade da cena brasileira das últimas décadas. Sua compreensão talvez exija que se admita nossa vasta ignorância no assunto e que se realize uma inversão: hoje nem sociologia nem ciência política explicam o voto. É o voto que está estampando uma sociologia política ainda por se fazer.

Fonte: Revista Pittacos


Postado por:
Laís Venâncio de Melo
Meryglaucia Silva Azevedo 
 Graduandas de Licenciatura em Pedagogia - UFCG
Bolsistas do Programa de Educação Tutorial - PET

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