[José Eisenberg e Gisele Silva Araújo]
Diz-se
que a cultura política brasileira tem forte caráter nacional, os
cidadãos e cidadãs conferindo menor importância às eleições locais. Esta
percepção talvez faça sentido, visto que durante mais da metade da
história do Brasil independente – o Império e os períodos ditatoriais da
República, 1930-1945 e 1964-1985 –, a maioria dos assentos
político-administrativos eram decididos, ou tinham sua sustentação
irradiada a partir do centro. O tema, no entanto, é controverso: muitos
autores do pensamento político brasileiro identificaram, principalmente
antes das medidas de integração nacional levadas à frente por Getúlio
Vargas, uma solidariedade política local ancorada no pertencimento
clânico ou regional, que se sobrepunha à ideia de nação.
Eleições vêm se tornando eventos
regulares no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988: de dois
em dois anos, o país escolhe os mandatários do poder nas várias
instâncias da federação. Afirmar a importância da política local,
entretanto, depende do quão relevantes são os pleitos municipais, o que
se subordina não apenas à continuada prática eleitoral, mas também à
visibilidade do efeito das decisões e ações dos representantes eleitos. A
conjuntura política nacional tem hoje muito espaço nos meios de
comunicação. Terá também na sustentação de candidaturas e bases
eleitorais locais? Ou será que, com a vertiginosa urbanização e formação
de cidades dos últimos 70 anos, o brasileiro constrói a motivação do
voto apoiado na realidade cotidiana do seu município, agora citadino e
não mais sob a lógica do clã rural?
O sistema político brasileiro é
frequentemente caracterizado como um presidencialismo de coalizão. A
dissociação formal entre a escolha dos representantes do Executivo e do
Legislativo – o eleitor está autorizado a indicar grupos distintos e até
mesmo opostos para aquelas posições –, demanda que se estabeleça um
entendimento entre os poderes, seja por meio de convergências
ideológicas, seja através de trocas mais ou menos republicanas.
Garante-se assim, antes ou depois das eleições, para efeito eleitoral ou
com vistas à governabilidade, um Legislativo afinado com o Executivo. E
ainda que a teoria não sublinhe, o Judiciário também está implicado na
coalizão: compõe-na em maior ou menor grau, podendo interpretar o
direito obstando ou não as iniciativas executivas e legislativas. Não à
toa, as nomeações para o Supremo Tribunal Federal são de suma
importância política.
As teses do presidencialismo de coalizão
explicam a coordenação horizontal entre os três poderes – separados pela
Constituição – mas não se debruçam mais detidamente sobre as relações
verticais da federação, entre Municípios, Estados e União. Não tratam,
destarte, do tema da produção do voto e da fabricação de candidatos
desde o local, tão cotidianos num país que tem eleições a cada dois
anos, nem tampouco das relações entre estes momentos e a política
estadual e nacional. Enquanto o entendimento é a lógica de construção
das coalizões, o que torna atores políticos legítimos para protagonizar
seu papel nestas alianças permanece obscuro. E as razões profundas do
nosso presidencialismo, independentemente de sua capacidade operacional,
talvez se esclareçam ali, na contínua produção do voto e na linguagem
comum que se estabelece entre ele e a representação.
As eleições no Brasil de 2012 – 24 anos e
seis pleitos municipais desde a Constituição de 1988 – se desenrolam em
meio a estas incompreensões. Nas últimas décadas, qual foi o efeito da
experiência continuada do voto, com seu calendário político intenso e
eleições bianuais, sobre a cultura política brasileira? Para além do
presidencialismo de coalizão – lógica determinada pelas próprias regras
do jogo –, como entender a linguagem da representação que mobiliza
milhões de votos e as conexões que se estabelecem entre pleitos
municipais, estaduais e nacionais?
Tais questões exigem que se ponha em
tela, antes de tudo, o quão efetivas são as agendas municipais. À
diferença da Primeira República – cenário do coronelismo, tal como
exposto por Victor Nunes Leal – a Constituição de 1988 ampliou as
atribuições de prefeitos e vereadores, e reduziu o poder dos Estados. É o
Município – assim lhe garantiu o constituinte – que tem autonomia e
prioridade decisórias nas matérias de interesse local, em que pese a
indefinição de conteúdo deste conceito. Sua importância na organização
federativa brasileira atual é tamanha, que alguns juristas o entendem
como um novo ente federativo, condição inédita no país e inexistente em
outros lugares. É evidente, entretanto, que o Município não está sozinho
em seu protagonismo na política e na administração pública: a União
também tem um rol bastante significativo de atribuições, certamente mais
extenso. Foram os Estados – antigos lugares-tenentes da
descentralização que sustentou o coronelismo – que se tornaram os primos
pobres da federação: restam a eles competências residuais que parecem
tender ao esvaziamento.
Ora, se a existência de uma cultura
política de acento nacional nunca foi incontroversa, menos ainda o será
neste cenário de fortalecimento do Município, e de eleições regulares e
contínuas. A hipótese que se robustece, então, é a de que a linguagem
da política – que estabelece a comunicação entre o representante e o
eleitor – está cada vez mais próxima das questões da vida cotidiana. No
Brasil – talvez mais que do que em outros lugares, pela centralidade
constitucional do Município e pelo rebaixamento administrativo e
econômico dos Estados –, o embrião do sistema político pode estar
assentado na realidade local, à moda tocquevilleana, afastada a forte
exigência da mitigação do interesse privado. Ao lado da cultura política
de caráter nacional, portanto, um complexo de formas de convivência
política do dia-a-dia parece encontrar passagem para o sistema político
formal, irradiando desde aí as mais altas figuras da representação.
De algum modo, portanto, aquele suposto
centralismo parece ter que se entender com o municipalismo: se as ações
nacionais afetam toda população e pretendem repercussão pela divulgação
prioritária que lhes conferem os meios de comunicação, o Município é
decisivo para todos nas minúcias do cotidiano. Do alto da União descem
as grandes políticas públicas, o financiamento de serviços locais
essenciais (caros demais para que a base tributária dos municípios
contemple), e as articulações político-eleitorais da coalizão. Cá
embaixo, onde vivem todos os brasileiros, é que se experimentam
assistência social, caridade, serviços de utilidade pública,
disponibilização de bens urbanos, questões da rua, do bairro, da escola,
do futebol, do posto de saúde, da igreja, do lazer, da juventude, do
trabalho, da velhice, da violência. A dinâmica do sistema político
brasileiro tem que operar, destarte, numa via vertical de mão dupla.
Compreender a linguagem da representação é
um desafio para a ciência política. As eleições municipais de 2012
oferecerão o desenho das escolhas do país e, se o analista puder afastar
sua infundada onipotência – que o faz entender como racionais apenas os
votos que se encaixam nos seus próprios critérios de racionalidade – ,
elas exporão sua própria gramática, mais potente, talvez, e mais
enigmática que a das coalizões centrais. Cada eleitor dirá ali quais são
seus bens relevantes e nomearão seus porta-vozes mais próximos,
representantes da oferta e demanda por serviços públicos, de preceitos
morais e/ou religiosos, da defesa de direitos de grupos específicos, ou,
simplesmente, de convicções fracas, pontuais e dispersas. O eleitor
brasileiro não é indiferente à política, e a causa não é a
obrigatoriedade do voto: a maioria digita números válidos, mesmo que
seja sem muita fé.
As adesões que se manifestam nos pleitos
municipais têm uma relevância para a compreensão da cultura política
brasileira até então pouco enfatizada pela ciência política, convencida
em demasia do centralismo. Afinal, embora tais adesões estabeleçam laços
políticos tênues, frágeis e móveis, elas guardam enorme significação,
precisamente porque articuladas à convivência social cotidiana e às
demandas que daí advêm. Os eleitos, então, tornam-se mandatários e
mandões a um só tempo: seu poder advém dos que ele reúne em torno de si,
e, através dessa mesma clientela, ele expande sua capacidade de mando,
aumentando o seu valor no arranjo institucional. As adesões múltiplas e
distintas que o sustentam voluntariamente envolvem a rua, o trabalho, a
igreja, o futebol, as novelas, programas laicos ou religiosos de
televisão, e até mesmo o tempo curto e entediante do horário de
propaganda eleitoral gratuita. Adesões que são impressionistas,
emocionais e racionais, tudo ao mesmo tempo, todas com igual valor.
Assim, mais do que obedecer mecanicamente
a lógica do centro, ou sucumbir inequivocamente à força do capital, o
voto do cotidiano expressa a malha densa em que se tecem os aspectos
mais vitais da experiência social. E, ademais, é também o voto que
representa as raízes descentralizadas da democracia do país: ao criar a
clientela local, dando partida ao mandonismo, ele constitui talvez o
elemento hoje dominante da cultura política brasileira. Ele é certamente
interpelado pelo centro e pelo dinheiro, mas também conforma, de baixo
para cima, o sistema político nacional.
O mandonismo, o clientelismo e a
associação com o capital são as três faces do que chamamos sistema
representativo democrático-liberal, aqui e alhures. Não são, portanto,
nenhuma jabuticaba brasileira. O coronel da Primeira República – o
proprietário rural que, diante da decadência do seu poderio econômico,
se fez representante político estadual privatizando o público em
proveito de sua classe – se vai longe. Hoje, adiantada a diferenciação
entre política e economia, a representação parece ser construída sem que
coincida necessariamente com o poder econômico, o que não impede, bem
sabido, que o público seja privatizado para benefício de alguns. A
lógica desta política, no entanto, passa a exigir entendimentos mais
complexos entre os mandatários-mandões, seus clientes e o capital,
obrigando-os a lidar com os resultados efetivos e percebidos das
decisões. Na base deste arranjo está a legitimação conferida pelo voto,
impossível de ser simplesmente comprado e tampouco explicado pela
suposta ignorância seletiva de uma parcela majoritária do eleitorado.
Tudo isso, somado à regularidade da experiência eleitoral no Brasil e ao
lugar destacado que o Município ocupa na ordem jurídico-política
brasileira, sugere que a política local possui forte potencial para
conformar a política dos Estados e da União. De baixo para cima, a
produção do voto do cotidiano tensiona a política nacional e o
presidencialismo de coalizão.
A questão municipal é a grande novidade
da cena brasileira das últimas décadas. Sua compreensão talvez exija que
se admita nossa vasta ignorância no assunto e que se realize uma
inversão: hoje nem sociologia nem ciência política explicam o voto. É o
voto que está estampando uma sociologia política ainda por se fazer.
Fonte: Revista Pittacos
Postado por:
Laís Venâncio de Melo
Meryglaucia Silva Azevedo
Graduandas de Licenciatura em Pedagogia - UFCG
Meryglaucia Silva Azevedo
Graduandas de Licenciatura em Pedagogia - UFCG
Bolsistas do Programa de Educação Tutorial - PET
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